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Poesia: Ter ou não ter Namorado?

De: Carlos Drummond de Andrade





Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo.

Namorado é a mais difícil das conquistas.

Difícil por que namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele,

de saliva, lágrimas, nuvem,

quindim, brisa ou filosofia.

Paquera, gabiru, flerte, caso, envolvimento,

até paixão é fácil.

Mas namorado mesmo é difícil.

Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem quer se proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia, pedindo proteção.

A proteção dele não precisa ser parruda,

decidida ou bandoleira, basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.

Quem não tem namorado não é quem não tem amor, é quem não sabe o gosto de namorar.

Se você tem três pretendentes, dois paqueras,

e um envolvimento, mesmo assim

pode não ter um namorado.

Não tem namorado quem não sabe o gosto de chuva, medo do pai, sanduíche de padaria

ou drible no trabalho.

Não tem namorado quem ama sem alegria.

Não tem namorado quem faz pactos de amor

apenas com a infelicidade.

Namorar é fazer pactos com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia

ou impossível de durar.

Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas, do carinho escondido na hora em que passa o filme, de flor catada no muro e entregue de repente, de poesia lida bem devagar, de gargalhadas quando fala junto ou descobre a meia rasgada, de ânsia enorme de viajar junto de metrô, nuvem, cavalo alado,

tapete mágico ou foguete interplanetário.

Não tem namorado quem não gosta de dormir agarrado, fazer sesta abraçado, fazer compras junto.

Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor.

Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e do amado e sai com ela para parques, fliperama, beira d´água, bosques enluarados,

ruas de sonho ou musical do metrô.

Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos, quem não se chateia com o fato de seu bem ser paquerado.

Não tem namorado quem ama sem gostar, quem gosta sem curtir,

quem curte sem se aprofundar.

Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, de madrugada ou no meio dia de sol em plena praia cheia de rivais.

Não tem namorado quem ama sem se dedicar, quem namora sem brincar,

quem vive cheio de obrigações.

Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.

Se você não tem namorado é porque não descobriu que o amor é alegre e se você vive pesando duzentos quilos de grilos e medos, ponha a saia mais leve, aquela de chita,

e passeie de mãos dadas com o ar.

Enfeite-se com margaridas e ternuras escove a alma com leves fricções de esperança.

De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim.

Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passar debaixo de sua janela.

Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante

a dizer frases sutis e palavras de galanteria.

Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida parar e de repente começar a fazer sentido."


Colaborador: Ação Jovem 2º trim. 2003